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O irmão, a missão e o sorriso de Guga

Gustavo Kuerten tem uma missão. Ele ainda não sabe qual é. Mas acredita que tem alguma coisa a ver com seu sorriso. Não aquele sorriso aberto que os fãs se acostumaram a ver nos fins dos torneios, com um troféu erguido sobre seus cachos. Também não é aquele sorriso do dia a dia, que diferencia as pessoas ditas simpáticas dos demais seres vivos um tanto carrancudos. É aquela expressão de alegria que sobrevive aos obstáculos da vida, dos saibros e das gramas, das dores e das mortes. Isso é para poucos. E poucos têm missões, no sentido mais amplo da palavra. Por isso Guga acredita que tem uma missão.

Seus obstáculos iam muito além daquela redinha de meia altura instalada no meio da quadra. Superavam com facilidade os saques de Sampras, Kafelnikov e companhia. Vinham desde a infância, quando seu pai morreu justamente em uma quadra de tênis. Moram em sua memória este e outro dia difícil, em que presenciou a morte do irmão Guilherme, com severas limitações físicas e de raciocínio.

“O pai continua me impulsionando para frente”, diz Guga, referindo-se ao seu genitor, Aldo, sem o pronome “meu”, à moda de catarinenses e gaúchos. “Isso me deixa contente, tanto ele quanto o Gui. Foram as maiores perdas da vida, muito duras. Mas é um sofrimento que não fica doendo, é um sofrimento que é pelo lado positivo. Se faz falta, é porque realmente eu tenho que ter orgulho dessas pessoas cada vez mais e me apoiar nelas continuamente”, afirma o ex-número 1 do mundo em entrevista exclusiva – a primeira parte da conversa foi publicada pelo Estadão e pode ser conferida neste link.

O famoso sorriso de Guga: em busca de sua missão

O famoso sorriso de Guga: em busca de sua missão

Guga conversou com o autor deste blog por ocasião do lançamento de sua biografia “Guga, um Brasileiro”. Neste livro de título modesto, pouco coerente com sua trajetória extraordinária, o tenista aposentado explica como tirou combustível dos capítulos mais tristes de sua vida.

“Tem bastante sofrimento ali, mas a sensação [ao escrever] era de transmitir a história feliz. Sou um cara que sou mais conhecido pelo sorriso, pela alegria. E minha história é feliz. Então, apesar da dramaticidade que tem no livro, a ideia era estar construindo a narrativa de uma forma agradável que a pessoa pudesse saborear com alegria, mesmo nos momentos ruins. Foi uma chave que virou na minha vida. De eu entender que até mesmo essas pauladas mais duras precisam ser bem observadas, precisam ser vistas por um lado positivo. É duro, mas na hora, você toma umas pancadas, com 18, 19 anos, tudo pode ir por ladeira abaixo, tudo acontecendo…”

Uma das pauladas mais dolorosas que Guga levou da vida foi a morte do irmão, aos 28 anos, em 2007. Ele pôde presenciar o momento do falecimento ao observar no hospital as últimas reações do querido familiar que sofria de paralisia cerebral. A tristeza, claro, ainda persiste numa segunda camada de sentimentos. Na primeira, Guga virou a “chave”.

Na sua vida, essa chave ganhou o nome de Instituto Guga Kuerten, chamado apenas de IGK por ele mesmo e seus colaboradores. Na vida de sua mãe, inspirou o trabalho à frente da Apae de Florianópolis. O ex-atleta não hesita ao afirmar que não fosse Guilherme em sua vida dificilmente teria gestado em sua mente a entidade sem fins lucrativos que atende cerca de 700 crianças e adolescentes na Grande Florianópolis.

“Sem ele, muita coisa deixaria de existir. Acho que o Gui me ajuda ainda constantemente a manter esse lado humano de uma forma absurda. O convívio com um irmão deficiente traz um ensinamento lindo e uma vivência humana que é espetacular”, ensina.

A capa da biografia de Guga Kuerten

A capa da biografia de Guga Kuerten

“Hoje a gente está antenado em tudo e esquece o que o cara do meu lado precisa. Do Gui, precisava trocar fralda, dar comida na boca. Era uma alegria que simplesmente acontece… É o auxílio humano, isso é imensurável. Como uma coisa muito simples consegue trazer uma alegria tão grande! Isso é contagiante! Acho que o Gui traz pra nossa família alguns conceitos de amizade, de valores, de comportamentos. Pô, é por causa dele. Ele foi o nosso professor. Além disso, ele gerava a união. Quando percebíamos, estávamos todos ao redor dele. Ele foi um cara fantástico. Hoje trazendo ao IGK um pouco dessa recompensa…”

Trabalho social, histórias de superação, grandes resultados em quadra, facilidade para se comunicar com o público. Você se vê com uma missão no mundo, Guga?

“Ainda não, cara. Não é tão claro. Parece que eu tenho uma vocação de contagiar as pessoas e o tênis me ajudou muito a fazer isso numa escala de milhões. Percebi há uns dois anos. O livro me ajudou um pouco a entender isso. É algo que é provocativo em mim em continuar contagiando as pessoas, de continuar envolvendo as pessoas. Agora com o livro, novamente”, diz ao citar a divulgação dos seus obstáculos e das suas “chaves”.

“Talvez isso seja uma missão dentro dessa vocação que eu tenho. Observo mais pelo lado natural. A resposta é sim, mas não sei qual seria. É continuar em frente. Eu vejo o resultado e depois eu posso dizer que eu completei essa missão também. Porque eu nunca tive uma visão de que ‘minha vida vai ser assim e assim’. Minha vida foi construída com a intuição, ingenuidade, uma crença maior, um estímulo e aí vai montando tudo isso. É assim que eu gosto”.

Guga dá o último sorriso. Na entrevista, é claro.

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